(Observação inicial da equipe No Corpo Certo: neste 27 de agosto, Dia do Psicólogo, publicamos esta carta, formulada por psicólogos e psicólogas. Ela vai ao encontro do depoimento desta terapeuta e esperamos que estes dois textos dêem início a uma discussão nacional, racional e respeitosa entre o Conselho Federal de Psicologia, os Conselhos Regionais, a classe profissional e o universo acadêmico, bem como sirva de norte para familiares e pacientes em sofrimento com seus corpos. Agradecemos aos autores e autoras o envio e a confiança depositada em nós, na esperança de dias em que possam se identificar e se manifestar com liberdade).

Carta de psicólogos e psicólogas ao Conselho Federal de Psicologia sobre a Resolução nº 1/2018 do CFP

 

Somos um grupo de psicólogas e psicólogos e vimos a público chamar a atenção para as consequências da Resolução nº 1, publicada em 29 de janeiro de 2018 pelo Conselho Federal de Psicologia. Acreditamos que esta norma coloca em risco crianças, adolescentes e adultos em confusão ou sofrimento com seu sexo biológico, sofrimento este que, em sua forma aguda, é diagnosticado atualmente como “incongruência de gênero”. Verificamos que as e os pacientes, suas famílias, ativistas, veículos de comunicação e profissionais de saúde e educação não estão recebendo todas as informações que deveriam sobre este assunto, o que resulta em matérias jornalísticas, artigos científicos, declarações e políticas públicas e, finalmente, em práticas educacionais, terapêuticas e médicas bastante perigosas. Levamos ao conhecimento da sociedade que esta Resolução, em conjunto com as atitudes de certos grupos, prejudica nossas atuações enquanto profissionais e enquanto estudantes, professores (as) e acadêmicos (as). Esta diretriz não está embasada em teorias científicas psicológicas próprias e foi publicada sem a devida discussão prévia e aprofundada com a comunidade profissional em sua diversidade e transformou o fazer da Psicologia numa prática de validação de discursos manifestos – e isto não é bem fazer Psicologia. Muitos acreditam que questionar identidades de gênero equivale a questionar orientações sexuais, associando estes questionamentos a tentativas de “conversão” popularmente conhecidas como “cura gay”. Nada mais longe da verdade, pois, ao contrário da homossexualidade e da bissexualidade, que se referem à escolha do objeto amoroso/sexual e não a uma questão de identidade, a dita incongruência de gênero pode levar a modificações corporais radicais e irreversíveis, inclusive em crianças e adolescentes.

Há vários pontos desta Resolução que deveríamos abordar; todavia, dentre todos, o artigo 7° é o mais pertinente para a questão aqui trazida: após colocar suas definições de gênero, identidade e sexo, o documento exige:

 

Art. 7º – As psicólogas e os psicólogos, no exercício profissional, não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização das pessoas transexuais e travestis.

Parágrafo único: As psicólogas e os psicólogos, na sua prática profissional, reconhecerão e legitimarão a autodeterminação das pessoas transexuais e travestis em relação às suas identidades de gênero” (grifos nossos).

 

O intuito deste texto não é “patologizar” ou invalidar a existência ou a experiência subjetiva das pessoas que se identificam como transexuais e travestis, mas lançar um olhar crítico sobre a atuação de profissionais de saúde, principalmente no que diz respeito a crianças e jovens. Sabemos que, legalmente, a autopercepção é suficiente para que alguém seja considerado uma travesti, uma mulher trans ou um homem trans; contudo, isto não pode encerrar a discussão, sobretudo quando parte desta população exige intervenções medicamentosas e cirúrgicas, algumas com efeitos permanentes. Nosso objetivo é problematizar o processo de diagnóstico de “incongruência de gênero” e sua resposta médica, processo que perpassa o reconhecimento dessa autopercepção pela autoridade clínica, que, no caso, somos nós, psicólogas e psicólogos. A “incongruência de gênero”, nome atual da disforia de gênero, é, resumidamente, o quadro clínico que compreende um estado de discordância e ou conflito entre um indivíduo e seu sexo biológico. Muito comumente, essa discordância e ou conflito se relaciona com o “gênero”, que definimos como aquilo que a sociedade prescreve como adequado para homens e mulheres. A fim de, supostamente, minimizar esse sofrimento, foi estruturada a tão conhecida medicina trans, e sua aplicação a crianças e adolescentes nos foi imposta, aqui e em outros países, sem que pudéssemos avaliar detidamente as consequências. Quando está-se diante de uma pessoa do sexo masculino que não se reconhece como menino ou homem ou uma do sexo feminino que não se vê como menina ou mulher, entra em cena todo um aparato médico-farmacêutico para que a mudança do corpo ocorra, primeiro com o diagnóstico médico e a sugestão de que seja realizada a “transição social”, depois com os hormônios bloqueadores de puberdade e os hormônios cruzados e, finalmente, com intervenções cirúrgicas e procedimentos estéticos.

Como a Resolução não fez exceções, ela em tese se aplica a menores de idade e isso é extremamente perigoso. Questionar a nomenclatura “criança trans” é preservar o direito à infância de pacientes que nos foram trazidos e trazidas com a hipótese diagnóstica de disforia de gênero, pois quando aceitamos de imediato a sua autopercepção (por exemplo, acatando a mudança de nome nessa faixa etária) precisamos refletir se o nosso relatório psicológico terá como fundamento a proteção dela ou se abre as portas para intervenções médicas que podem colocar em risco seu desenvolvimento humano. Aceitar a autopercepção da criança sem considerar sua idade e fase de desenvolvimento é uma falha em qualquer teoria do desenvolvimento, de Freud a Bronfenbrenner. A infância é uma potência que deverá se desenvolver com o contato social. O hemisfério esquerdo é menor do que o direito pós-nascimento. Ele só alcança o desenvolvimento esperado se o sujeito interagir com as pessoas, o mundo e a cultura. Escolham o teórico da infância que preferirem: Piaget, Vygotsky, Wallon… Apesar das suas diferenças, todos irão concordar que o desenvolvimento humano parte do concreto para o abstrato. A criança é muito imediatista: quando ela deseja alguma coisa, vai em busca da realização desse desejo sem respeitar as regras, a lei, a moral e a própria realidade. O mundo fantasioso e imaginativo da criança é a prova de que a realidade é uma construção. A fantasia, como dissemos, não é o oposto da realidade. Basta uma leitura rápida da teoria psicanalítica para entender que a fantasia compõe a realidade. Freud nos ensina o desejo da mãe pela criança, que deve ser entendido a nível real, mas também simbólico. A criança precisa ser inserida na lógica da moralidade; ela não sabe que isso ou aquilo não pode. As ideias que trazemos aqui são consenso na academia; não deveriam ser surpresa para ninguém! As crianças estão se desenvolvendo e o ápice desse desenvolvimento é a maturação moral, o planejamento de vida e o entendimento das consequências de suas ações. Não é novidade que o fato de que o último lobo a se desenvolver é o pré-frontal, até os 26 anos de idade. Nele, estão localizadas as atividades mais refinadas do comportamento humano: as de abstração.

Quando uma criança ou adolescente chega em nosso consultório para uma avaliação sobre como ela se vê, tudo que foi exposto acima está em jogo. A consciência sobre si é um processo psicológico que se organiza com a gradual inserção do sujeito na sociedade. Processo este que leva o sujeito da compreensão de si ao entendimento do outro, levando à cidadania. Uma avaliação equivocada e nós estaremos privando a criança ou adolescente do acesso à cidadania! É preciso que a psicóloga e o psicólogo entendam que quando uma criança do sexo masculino diz que é menina, ela está dizendo o seu desejo, o desejo dos seus familiares, o desejo de uma sociedade, o desejo do Outro. Quando Lacan formulou o seu famoso estágio do espelho, demonstrou que o surgimento do Eu se dá na relação com o outro: a minha primeira imagem, se configura como uma unidade no outro, pois o Outro é espelho do Eu. Ora, de acordo com Lacan há uma confusão impossível de desfuazer na fronteira que separa o sujeito do Outro.

Todo o arcabouço teórico que estudamos, repita-se, embasa as nossas preocupações. Para ficarmos em um único nome e uma única obra, trazemos os ensinamentos de Winnicott acerca da puberdade e adolescência em “O conceito de indivíduo saudável”, de 1967 (trechos publicados em Tudo Começa em Casa, 3a ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999,  pp. 6-7):

Lá pelos quatorze anos, o rapaz ou a moça que não pularam a fase da puberdade podem, de modo inexorável e saudável, ser lançados num estado de confusão e dúvida. A palavra ´estagnação´ tem sido aplicada aqui – e é uma palavra útil. Permitam-me enfatizar que quando um rapaz ou uma moça age de modo desajeitado ou confuso, em meados da puberdade, isso não é doença.

A puberdade significa tanto um alívio como um fenômeno extremamente perturbador, que estamos apenas começando a compreender. Hoje em dia, rapazes e moças púberes conseguem experimentar a adolescência como um período de crescimento em companhia de outros no mesmo estado, e a tarefa difícil de separar o que é saudável do que é doentio, nessa fase, diz respeito à era do pós-guerra. É claro que os problemas não são novos.

Àqueles que estão envolvidos nessa tarefa, só se pode solicitar que se dediquem mais à solução dos problemas teóricos do que à solução dos problemas reais dos adolescentes, os quais são capazes, a despeito da inconveniência de sua sintomatologia, de melhor encontrar sua própria salvação. A passagem do tempo é significativa. Um adolescente não deve ser curado como se fosse um doente. Acho que essa é uma parte importante da avaliação de saúde. Isso não implica negar que possa haver doença durante o período da adolescência.

Alguns adolescentes sofrem muito, e não oferecer ajuda pode ser crueldade. É comum que sejam suicidas aos quatorze anos, e é deles a tarefa de tolerar a interação de muitos fenômenos disparatados – sua própria imaturidade, suas próprias mudanças relativas à puberdade, suas próprias ideias do que é a vida e seus próprios ideais e aspirações; acrescente-se a isso sua desilusão pessoal a respeito do mundo dos adultos, que lhes parece essencialmente um mundo de compromissos, de falsos valores e de infinitas digressões em relação ao tema central. À medida que rapazes e moças adolescentes deixam esse estágio, começam a se sentir reais, e adquirem um senso de self e um senso de ser. Isso é saúde. A partir do ser vem o fazer, mas não pode haver o fazer antes do ser – eis a mensagem que os adolescentes nos enviam.

Psicólogos devem agora “legitimar autodeterminações, autoidentificações e discursos”? Isso se torna potencialmente nocivo do ponto de vista da saúde mental dos sujeitos em análise e dos sujeitos sociais que não estão em terapia mas levam seus filhos e filhas a um consultório psicológico por estes, aparentemente, vivenciarem a disforia de gênero como sintoma, apresentando sofrimento psíquico. O Psicólogo não é aquele que “legitima discursos”. Ele justamente os questiona, convida aqueles que sentam à sua frente a refletir, analisar causas, intenções, necessidades afetivas que motivam e direcionam comportamentos. Psicólogos são facilitadores do autoconhecimento, da autonomia existencial, da liberdade do ser. E essa prática é mais delicada ainda no que concerne pessoas que ainda estão em uma fase de formação, desenvolvimento e estruturação da personalidade e do ego. Mais do que em um adulto, a psique infantil e púbere é mutável, plástica, e altamente influenciável por ideologias, pois são sujeitos que demandam referências externas para sedimentar a sua própria psicologia, o seu próprio senso de identidade. Ter uma escuta de afirmação da identidade de um menor de idade e validá-la automaticamente seria sugestivo para uma atitude antiética e irresponsável de nossa parte. Através de diálogo, questionamentos, ferramentas pertinentes a cada abordagem psicológica é que chegamos aos cernes das questões que o indivíduo traz no discurso como verdades e na sua autopercepção e podemos ajudá-lo a se descobrir e se definir como sujeito e cidadão de forma saudável, respeitando o seu processo gradual de amadurecimento. 

Como é avaliada essa autopercepção? A Psicanálise nos ensina sobre o conceito de fantasia e realidade psíquica. Lacan chegou a afirmar que se a Verdade dissesse alguma coisa ela diria: eu minto. Um entendimento apressado e preguiçoso pode pressupor que essa ideia visa a desmerecer a fala do sujeito, mas isto não condiz com a teorização psicanalítica. A clínica psicanalítica evidenciou que há um mal-entendido fundante do sujeito porque nós dizemos muito mais e muito menos do que aquilo que supomos dizer. Isto ocorre por conta do próprio processo de socialização do indivíduo, que, em Psicanálise, nós conhecemos como Complexo de Édipo. Quando Lacan afirma que o desejo do sujeito é o desejo do Outro, ele quer  dizer que tudo aquilo que a gente entende como sendo nosso – nossa percepção, nossos sentimentos, nossos pensamentos etc… tudo isso vem do Outro. Ou seja, vem da cultura, da sociedade e da família na qual estamos inseridos. Portanto, quando uma pessoa do sexo masculino se enxerga como mulher, é preciso que nós investiguemos todas as coisas que ela quer me dizer quando diz que é, na verdade, uma mulher trans. 

Entendamos bem qual é a questão colocada aqui por este texto. Defendemos que no processo de transição a avaliação psicológica não deve ser concluída apenas com a autopercepção do cliente-paciente-analisando. Com isto, não queremos invalidar a fala do sujeito que se percebe de determinada maneira. Nós estamos aqui enquanto cientistas porque é isso que esperam as pessoas que nos procuram e buscam resolver os seus problemas; se as pessoas que chegam até nós procuram a Psicologia é com a Psicologia que devemos nos referendar a nível teórico, técnico e ético. Por exemplo, quando nos limitamos à autopercepção, sem aprofundar o seu entendimento, nós ainda estamos cumprindo com o nosso Código de Ética no que tange o inciso III? Vejamos o que ele diz: “o psicólogo atuará com responsabilidade social, analisando crítica e historicamente a realidade política, econômica, social e cultural”. Questionar o que é dito pelo paciente não é duvidar ou “deslegitimar” a fala dele, mas sim levá-lo a pensar sobre aquilo que ele me diz. Nossa proposta está alinhada com os fundamentos do Código de Ética da Psicologia como “abrir espaço para discussão, pelo psicólogo, dos limites e interseções relativos aos direitos individuais e coletivos, questão crucial para as relações que estabelece com a sociedade, os colegas de profissão e os usuários ou beneficiários dos seus serviços”. Esta carta tem o objetivo, nem sempre alcançado, de abrir espaços de diálogos, debates e desenvolvimento crítico entre nós, colegas de profissão, no âmbito de nossa autarquia federal, o Conselho Federal de Psicologia, em nossas regionais, na sociedade, com nossos e nossas pacientes, em espaços públicos e privados e, finalmente, na pessoa que chega até nós.

Preocupamo-nos, também, com uma outra questão, que não está explícita na Resolução mas a ela se alinha: a tendência a cobrar de terapeutas, estudantes de psicologia, acadêmicos e acadêmicas a adesão ou, no mínimo, a não-crítica em relação a uma teoria não psicológica, não política, não científica, chamada Queer, impulsionada a partir da década de 80/90. Isso está perpassando campos diversos e funcionando como uma maneira de limitar o saber das e dos estudantes, a produção acadêmica e a atuação de profissionais que lidam com as questões de gênero, sexualidade e identidade, as quais falam do humano, do psíquico, do inconsciente. Compreendemos que há autores e autoras dentro dos estudos queer cujas obras podem ser de grande valia para alguns, mas à Psicologia desejamos, no que tange às suas diretrizes, neutralidade teórica e ideológica, pluraridade de olhares e liberdade para seus profissionais, sempre dentro dos princípios éticos designados à categoria. Há a exigência, sutil ou agressiva, para que nossa visão de mundo e nossa clínica sejam limitadas por ideias específicas e carentes de arcabouço teórico e técnico, de conceituação ainda vaga dentro da Psicologia em si. À primeira vista, estas ideias podem soar progressistas, inclusivas e pró-diversidade, mas estão se tornando censuradoras e adoecedoras. Não queremos negar a existência da Teoria Queer mas sim a liberdade para questioná-la, para não tratá-la como um dogma discursivo. E que isso possa ser feito sem que sejamos hostilizadas e hostilizados. Há também a tendência a apressar avaliações, a impedir discussões acerca da ideia de identidade de gênero e ou de seu uso atual e a evitar que o fértil movimento de desmedicalização da vida chegue até esta seara.

Sabemos que quando uma ideia não pode ser questionada, há mecanismos de poder em ação. Nós, psicólogos e psicólogas, devemos nos posicionar de forma crítica sempre, quando detectamos relações de poder, segundo nosso Código de Ética. Obrigar-nos a pensar o gênero sob perspectivas medicalizadoras, sexistas e ou pós-modernas, sem a devida análise e sem oportunidade de questionamento, é exemplo justamente das relações de poder que denunciamos e avilta a Psicologia. Recusamo-nos a assumir uma postura acrítica em nome da visibilidade e denunciamos que estamos de mãos atadas e temerosos em lidar com a questão, pois questionar e analisar é facilmente classificado como ofensivo. Basta não estarmos de pleno acordo com o que se ouve e captar mecanismos afetivos e inconscientes subjacentes a determinada fala.

Essa censura limita a nossa atuação e vai na contramão do dever do psicólogo. Sabemos muito bem, como psicólogos, que nos é vedado orientar de qualquer forma, pacientes, em qualquer viés ideológico, religioso, político etc. E assim trabalhamos. Contudo, ocorre na atualidade uma impossibilidade de questionar e dialogar acerca de vieses ideológicos, discursos, autoidentificações que estão mudando a vida, o corpo, a psique de crianças, adolescentes e adultos. Para o resto da vida. A sociedade é mutante e há uma nova demanda nos nossos consultórios. Há um grande perigo em se legitimar compulsoriamente a autodeterminação de uma criança ou adolescente em formação sobre como eles se identificam. A identidade não está formada! Portanto, tomar afirmativas como verdades inquestionáveis neste período é prejudicial. Corroborar discursos manifestos sem sequer sugerir reflexão, sem convidar a uma dialética porque isso pode ser considerado discriminação ou orientação é o oposto da ética do psicólogo. No que tange aos adultos, também há consequências desastrosas nesta conduta. Nenhum sujeito em análise vem ao consultório para ouvir apenas validação sem aprofundamento. E isso se estende ao contato com os pais. Não é objetivo de psicólogas (os) legitimar a percepção dos pais sobre quaisquer que sejam suas crenças em relação à criança ou adolescente; antes, é objetivo da prática psicológica orientar os pais visando à potencialização de um diálogo e de práticas mais apropriadas para um desenvolvimento de indivíduos críticos e capazes de tomar decisões de forma autônoma e consciente.

Haveria relações de poder ocorrendo quando passa a ser vedado a uma categoria de profissionais o direito de questionar afirmações identitárias, indagar e analisar junto com seus pacientes os atravessamentos sociais e afetivos que formam a visão de si mesmo? Nosso senso de identidade sofre influências, sociais, culturais, inconscientes e mudanças radicais. O fenômeno da destransição, cada vez mais comum em países como os EUA e Inglaterra, acende um sinal de alerta ao qual precisamos ficar atentas e atentos. Após a transição, muitos indivíduos não encontram o conforto prometido pela medicina trans. Obviamente, há pessoas que se sentem realizadas e insistimos que não queremos desmerecer a experiência daquelas e daqueles que se sentem satisfeitas e satisfeitos com a transição; a nossa preocupação não é esta, porém esse fato não impede a constatação de que há muitas pessoas que não se sentem da mesma forma e procuram formas de destransicionar. O percurso da destransição é lento e difícil, pois, muitas vezes, a pessoa precisa passar por novas cirurgias e ou intervenções físicas para, por exemplo, retomar o equilíbrio hormonal existente antes da transição. Há casos de depressão e suicídio. Todavia, não há espaço na mídia oficial para essas pessoas relatarem as suas experiências a fim de que possamos aprender com elas e por isso, as redes sociais têm se tornado local de militância para as destransicionadas. Essa falta de visibilidade é motivada pelo silenciamento que certos ativistas mais radicais praticam, fortalecidos pela Resolução que ora criticamos e pela criminalização da transfobia pelo Supremo Tribunal Federal. Se é verdade que o intuito da decisão foi evitar violências contra pessoas trans, o medo de ser processado impede que tenhamos um debate lúcido e eficiente, pois, muitas vezes, são classificados como transfóbicas as mensagens que as pessoas em processo de destransição têm para passar. 

Da forma como está redigida, a Resolução não protege nem profissionais, nem pacientes, nem suas famílias, bem como induz a sociedade brasileira a uma visão errônea do papel dos e das terapeutas. Não estamos ajudando nem pacientes que ainda estão no estado inicial de questionamento nem aqueles que estão decididos a realizar a transição médica, os quais merecem que esta seja realizada da melhor forma possível, minimizando os traumas futuros. Ela muito menos possibilita o atendimento adequado a pessoas que se arrependeram do processo e ou que buscam destransicionar ou já destransicionaram. Acreditamos também que caso as famílias acreditem que terapeutas irão necessariamente afirmar as declarações de seus filhos e filhas, podem decidir por sequer levá-los a consultórios ou a instituições públicas que forneçam atendimento terapêutico. 

Assim, trazemos a público que esta normativa afeta diretamente o trabalho do psicólogo, atravessa a nossa prática, se mescla a diversas outras questões como misoginia, homofobia, lesbofobia, bullying escolar e também depressão e outros sofrimentos. É fundamental fazer uma análise crítica sobre estarmos atendendo exatamente a que tipo de demanda, a que desejo, a que influências sociais, contemporâneas. Qual será a consequência da nossa conduta, inclusive para fora do consultório – a família do paciente, a sociedade em geral? O que as pesquisas nos mostram? Devemos incluir na nossa reflexão que há diversos fatores subjacentes neste boom nos números de casos de suposta transexualidade infanto-juvenil nos últimos poucos anos. De adultos também. É um fenômeno social ligado diretamente à indústria médica, cosmética e farmacêutica, pois foram colocadas como tratamento mudanças corporais para a resolução de sofrimento psíquico. Estes fatores são altamente relevantes para a análise crítica, para ponderação. Se conectam. Psicólogos sabem muito bem a ética profissional: temos o nosso código. Um profissional de Psicologia ético entende que jamais deve propagar o preconceito e orientar de seus pacientes. Será que esta nova Resolução não nos castra e descaracteriza o fazer do psicólogo em alguma instância? Devemos legitimar uma autoidentificação sem fazermos perguntas? Não existe Psicologia sem perguntas!

A psicologia é uma ciência e como tal evolui a partir da discussão e da superação de posições anteriores. Sabemos que como toda ciência ela não é neutra e tende a reproduzir o arcabouço ideológico da classe dominante, como todas as produções da cultura mediadas pela sociedade de classe. Historicamente essa mesma ciência (principalmente em seu diálogo com a psiquiatria) serviu de dispositivo de legitimação para ideias de superioridade racial, para controle de mulheres e também de indivíduos desviantes do status quo como gays e lésbicas, patologizando arranjos psíquicos produzidos pelas vivências de repressão, violência e invisibilidade e também para adequação de trabalhadores diante da exploração. A psicologia reproduz a lógica liberal quando centra no indivíduo a causa última de vivências que são ao contrário, sociais. Obrigar profissionais a aceitarem a identidade de crianças e mesmo de adultos sem compreender e explorar os determinantes que permeiam este fenômeno é ir contra a própria ciência psicológica; a constituição da Identidade é um processo constante que se dá a partir das experiências sociais e culturais internalizada pelo sujeito, sempre em relação com o contexto histórico e cultural destes. Um processo que modifica no decorrer da história individual dos sujeitos mediado pela cultura no qual estão inseridos. Sob a ideologia liberal, o homem se afasta da materialidade como forma de camuflar as contradições do capital e as patologias enfrentadas pelos sujeitos modernos são rotuladas como manifestações individuais descoladas da cultura. Afinal, de outro modo, essas patologias denunciariam o caráter exploratório e patriarcal das relações sociais mediadas pelo modo de produção capitalista.

Impedir a discussão de um fenômeno tão complexo, interligado à poderosa indústria farmacêutica e que transforma diagnósticos em sentenças irreversíveis é impedir a própria evolução da ciência. A psicologia deve ter por compromisso a emancipação dos indivíduos e a compreensão destes como sujeitos sociais capazes de modificar a realidade que os circunda. O artigo 7° da Resolução 01/2018 contrasta com o Princípio Fundamental VII do Código de Ética do Psicólogo (Resolução 010/2005): “O psicólogo considerará as relações de poder nos contextos em que atua e os impactos dessas relações sobre as suas atividades profissionais, posicionando-se de forma crítica e em consonância com os demais princípios deste Código”. Não concordamos com o caminho trilhado nos últimos anos pelos conselhos profissionais de, nesta discussão ainda inconclusa sobre identidade de gênero, se orientarem pela ótica liberal e censurarem qualquer tipo de questionamento em relação ao autodiagnóstico feito por esta população, inclusive por crianças e adolescentes.

Solicitamos aos e às colegas psicólogos e psicólogas, aos respeitáveis Conselhos Regionais e ao Conselho Federal de Psicologia, às professoras, professores, pesquisadores, pesquisadoras e estudantes de cursos de Psicologia uma profunda reflexão acerca da Resolução nº 1/2018. E que esta reflexão seja o início de um processo que leve à substituição dessa diretriz por outra. Que equilibre tanto o direito de pessoas travestis e transexuais a um processo terapêutico que respeite sua subjetividade e autonomia quanto o de profissionais de saúde de exercerem seu ofício com dignidade, liberdade e responsabilidade, particularmente no que tange a crianças e adolescentes e suas famílias, e equilibere também o direito a ensinar, aprender e acessar materiais, autoras, autores e visões de mundo variados.

Finalmente, solicitamos à sociedade que esta mensagem seja encaminhada ao maior número de pessoas, a fim de que tenham conhecimento do que está se passando e que possamos pensar em soluções em conjunto para o bem comum.