[ Observação inicial da equipe No Corpo Certo: o autor deste texto é o veterano psicanalista britânico dr. Marcus Evans. Ele pediu demissão do Tavistock Centre, clínica pública que equivale aos nossos ambulatórios de “identidade de gênero”, em protesto pelo “tratamento” oferecido atualmente a crianças, adolescentes e adultos em confusão e ou sofrimento com seu sexo biológico. O artigo foi publicado inicialmente aqui e seu título original traduzido é: “Porque eu pedi demissão da Tavistock: crianças que se identificam como trans precisam de terapia, não só de ´afirmação´ e medicamentos”. Nossa tradução se baseia, com algumas adaptações, na realizada por Gabrielle Polary em seu Medium.]

Nos últimos cinco anos, houve um aumento de 400% nos encaminhamentos ao Tavistock Centre, no norte de Londres, a única clínica do Serviço Nacional de Saúde (NHS) na Grã-Bretanha que trata menores de idade com questões no desenvolvimento de suas identidades de gênero. Durante esse período, também houve uma mudança abrupta na composição dos menores que procuram tratamento. Antigamente, uma maioria significativa de pacientes eram meninos que se declaravam meninas. Agora, uma maioria significativa são garotas que afirmam ter uma identidade de gênero masculina, geralmente após a Disforia de Gênero de Início Repentino – DGIR (1) na adolescência.

Não compreendemos totalmente o que está acontecendo nessa área complexa e é essencial examinar o fenômeno de maneira sistemática e objetiva. Mas isso se tornou difícil no ambiente atual, pois o debate é continuamente encerrado em meio a acusações de transfobia. Como argumentei em uma apresentação em maio de 2019 perante à Câmara dos Lordes, esse verdadeiro regime de censura está prejudicando as crianças e adolescentes.

Aqueles que defendem uma abordagem sem questionamentos baseada na “afirmação” de crianças e adolescentes que se identificam como trans geralmente alegam que qualquer atraso ou hesitação em ajudar a transição de gênero desejada pelo meninos ou meninas pode causar danos psicológicos irreparáveis e, possivelmente, levar ao suicídio. Eles também costumam citar pesquisas que visam a provar que uma criança que faz a transição pode ter níveis mais altos de saúde psíquica e satisfação com a vida. Nenhuma dessas reivindicações está alinhada substancialmente com dados ou estudos robustos nessa área. Eles também não se alinham aos casos que encontrei ao longo de décadas como psicoterapeuta.

Durante os anos 80, avaliei adultos parasuicidas (aparentes tentativas de suicídio ou gestos suicidas). Vários de meus pacientes haviam passado por uma cirurgia de redesignação de gênero e frequentemente estavam furiosos com a perda das funções biológicas sexuais. Eles também estavam ressentidos com os profissionais da psiquiatria, os quais, acreditavam eles, falharam em investigar adequadamente os problemas psicológicos subjacentes associados à disforia de gênero.

Como psicoterapeuta, dei consultas em vários serviços de saúde mental que lidavam com pacientes que exibiam comportamentos desafiadores. Nessa condição, observei que pacientes com histórico de transtorno mental grave e duradouro ou transtorno de personalidade às vezes desenvolviam também disforia de gênero. Um tema recorrente em suas falas era a crença de que os tratamentos físicos removeriam ou resolveriam aspectos de si mesmos que lhes causavam dor psíquica. Quando essas intervenções médicas falhavam em remover seus problemas psicológicos, a decepção poderia levar a uma escalada de auto-agressão e ideação suicida, à medida que o ressentimento e o ódio contra eles mesmos eram representados em relação aos seus corpos.

Um rapaz com diagnóstico de esquizofrenia tinha medo de sua própria agressividade, pois uma vez ameaçou sua mãe (de quem ele dependia para cuidar dele) com uma arma. Depois que eu o tratei por vários meses, durante os quais ele explorou o medo de seu próprio temperamento explosivo, ele subitamente anunciou que queria mudar de sexo. Não havia nenhuma evidência de menção anterior a disforia de gênero nas anotações dele ou em suas consultas comigo.

Naquela época, o diagnóstico de esquizofrenia era uma contra-indicação para a cirurgia de redesignação sexual. No entanto, o paciente foi rapidamente avaliado e encaminhado pela Clínica de Identidade de Gênero Charing Cross. Na minha opinião, mudar de gênero provavelmente foi uma estratégia para imobilizar seu temperamento assustador e o medo de explosões psicóticas (já que as mulheres são estereotipicamente menos violentas e ameaçadoras). Escrevi para a Charing Cross recomendando que a psicoterapia deveria continuar e que os tratamentos de redesignação de gênero deveriam ser suspensos para que essas questões mais profundas pudessem ser abordadas. A equipe que tratou o paciente indicou sua discordância e continuou com o encaminhamento.

A Clínica Tavistock. Fonte: The Guardian

Minhas preocupações nesse campo se tornaram mais agudas na primavera de 2018, depois que eu me aposentei do trabalho ativo como terapeuta e ingressei na Assembléia de Dirigentes do Serviço Nacional de Saúde Tavistock e Portman, que abriga o Serviço de Desenvolvimento de Identidade de Gênero (GIDS) da citada Clínica Tavistock, um serviço público disponível para qualquer pessoa no Reino Unido. Assim que entrei, tomei conhecimento da crescente controvérsia sobre o GIDS. Uma carta havia chegado de um grupo de pais queixando-se de que seus filhos estavam sendo encaminhados muito rapidamente através do GIDS sem nenhuma avaliação psicológica séria. A autora da carta, uma mãe que representava um grupo de mães e pais, me escreveu na minha condição de dirigente e eu respondi, distribuindo cópias desta resposta a outros dirigentes.

Na mesma época, o Dr. David Bell, consultor sênior do Tavistock & Portman NHS Trust e dirigente da Tavistock, foi abordado por dez funcionários da GIDS (o equivalente a cerca de um quinto da equipe de Londres) que estavam com graves preocupações éticas semelhantes às expressas na carta dos pais — incluindo avaliações clínicas inadequadas, pacientes sendo empurrados para intervenções médicas precoces e o fracasso do GIDS em resistir à pressão de ativistas trans. Como descobri, esta não tinha sido a primeira vez que essas preocupações foram levantadas. Treze anos antes, a psicoterapeuta Susan Evans (que, deixo esclarecido, é minha esposa) havia levantado suas próprias preocupações sobre a profundidade do processo de avaliação por certos funcionários.

Como dirigente do Tavistock Trust, testemunhei pessoalmente tentativas da administração do truste de rejeitar ou prejudicar tanto o relatório do Dr. Bell, que ele enviou no final de 2018, quanto a carta dos pais. Isso incluiu acusar o Dr. Bell de ficcionalizar os estudos de caso que ele descreveu, questionar suas credenciais, ocultar seu relatório de alguns dirigentes e impedi-lo de participar de uma reunião para discutir a resposta do Diretor Médico ao seu relatório.

Aprendi, através de uma longa experiência no gerenciamento de áreas clínicas no Serviço Nacional de Saúde, que esses esforços para descartar ou desacreditar preocupações sérias sobre um serviço ou abordagem clínica são empreendidos em regra por aqueles que procuram fugir à responsabilidade e blindar seus métodos de críticas. Tal abordagem, na defensiva e egoísta, seria perigosa e censurável em qualquer contexto do Sistema Nacional de Saúde. Era particularmente preocupante no contexto de um serviço que trata jovens vulneráveis em meio a decisões que mudam uma vida, muitas vezes decisões irreversíveis que têm consequências médicas desconhecidas. E assim, em 2019, renunciei do conselho dirigente da Clínica Tavistock em protesto pelo fracasso do Trust em abordar as sérias preocupações que o Dr. Bell e os pais haviam levantado.

Muitos profissionais de saúde mental compartilham dessas preocupações. Mas dizer isso publicamente é difícil. Os jornalistas que pesquisaram essa área relatam que, embora os entrevistados estejam dispostos a falar confidencialmente sobre suas preocupações, eles fogem de ser nomeados por medo de serem acusados de intolerância ou de atacar os Direitos Humanos. Em um excelente livro de 2019, Inventing Transgender Children and Young People , as autoras Heather Brunskell-Evans e Michele Moore (2) reuniram clínicos e acadêmicos experientes para criticar certas abordagens da disforia de gênero. Em uma atitude sem precedentes, o Serviço de Desenvolvimento de Identidade de Gênero – GIDS ameaçou processar a editora e exigiu ver o livro antes da publicação.

E o que é pior: esse esforço para suprimir visões consideradas “fora de moda” foi acompanhado por algumas organizações líderes, incluindo a Academia Americana de Pediatria (AAP), cuja declaração de diretrizes acerca desse assunto, “Garantindo atendimento integral e apoio a crianças e adolescentes transgêneros e com diversidade de gênero”, foi desmascarada com desdém em um artigo recentemente publicado por James Cantor num veículo revisado por pares. “Embora quase todas as clínicas e associações profissionais do mundo usem o que é chamado de abordagem de espera vigilante (3) para ajudar crianças com ´diversidade de gênero (GD)´, a declaração da AAP rejeitou esse consenso, endossando a afirmação de gênero como a única abordagem aceitável”, escreve Cantor. A abordagem da AAP, como a implementada por muitos clínicos no GIDS, parece ser mais motivada pela ideologia política do que pelas necessidades clínicas das crianças apresentadas.

Em parte, essa tendência está enraizada na ideia caprichosa de que todos — incluindo crianças — têm uma identidade de gênero inata, semelhante a uma alma religiosa, que se descobre e nutre. Mas, como escreveram recentemente os autores William J. Malone (4), Colin M. Wright e Julia D. Robertson em Quillette, o conceito de identidade de gênero é dúbio:

“Esse termo geralmente é definido para significar o sentido “interno, profundamente entendido” de se ser homem ou mulher (ou, no caso de crianças, menino ou menina), ambos, ou nenhum dos dois. Também se tornou comum afirmar que esse senso de identidade pode ser articulado de maneira confiável por crianças a partir dos três anos de idade. Embora essas alegações sobre “identidade de gênero” não tenham atraído um escrutínio sistemático a princípio, elas agora se tornaram alvo de críticas de um número crescente de cientistas, filósofos e profissionais de saúde. Estudos de desenvolvimento mostram que as crianças pequenas têm apenas uma compreensão superficial de sexo e gênero (na melhor das hipóteses). Por exemplo, até os sete anos de idade, muitas crianças acreditam que, se um garoto veste um vestido, ele se torna uma menina. Isso nos dá motivos para duvidar que um conceito coerente de “identidade de gênero” em crianças pequenas possa até mesmo existir. Na medida em que essa identidade possa existir, o conceito se baseia em estereótipos que incentivam a mistura de gênero com sexo”.

Certamente é verdade que os terapeutas não devem tentar impor sua ideia do que é “normal” a um paciente que acredita ser trans. Nem devem se empenhar na tentativa de converter o indivíduo à sua maneira de pensar. No entanto, como em todos os contextos, o terapeuta deve resistir à tentação de suspender a curiosidade, aceitar acriticamente a apresentação do paciente pelas aparências e, em seguida, agir como uma líder de torcida “afirmativa” para atos de transição que mudam a vida. Em vez disso, o objetivo da terapia exploratória deve ser entender o significado por trás da apresentação de um paciente, a fim de ajudá-lo a desenvolver uma compreensão de si mesmo, incluindo os desejos e conflitos que direcionam sua identidade e escolhas.

Até certo ponto, a extrema deferência que está sendo mostrada agora para menores de idade que se apresentam como trans pode estar ligada à mudança mais geral na maneira como os médicos e outras figuras de autoridade são percebidos na era da Internet. Embora essas figuras de autoridade já tivessem ampla licença para avaliar seus pacientes de acordo com seus conhecimentos, esse gatekeeping agora é visto como controlador e até repressivo. Muitos pacientes atualmente vêem a visita de um médico através das lentes da cultura do consumidor — em que o cliente está sempre certo. [Nota da equipe No Corpo Certo: “gatekeeping” ou “controle das portas”, aqui, significa a avaliação prévia de um (a) profissional de saúde mental, em geral psiquiatra, psicólogo (a) ou psicanalista, acerca da conveniência e segurança de um indivíduo realizar intervenções corporais como aplicação de hormônios e cirurgias.]

Quando os médicos sempre dão aos pacientes o que eles querem (ou acham que querem), as consequências podem ser desastrosas, como vimos na crise dos opióides. E há toda a possibilidade de que o tratamento médico inadequado de menores com disforia de gênero possa seguir um caminho semelhante. Os profissionais, é compreensível, querem proteger seus pacientes da dor psíquica. Porém, soluções rápidas baseadas apenas em relatos próprios podem ter trágicas conseqüências a longo prazo. E um número crescente de “desistentes” de uma identidade trans (também conhecidos como destransicionados) já está buscando a responsabilização dos profissionais médicos que carimbaram suas reivindicações de transicionar. Em 2019, quando uma mulher britânica que já se identificou como trans chamada Charlie Evans (5) se manifestou publicamente acerca de sua desistência, ela foi contatada por “centenas” de outros desistentes e formou um grupo chamado The Detransition Advocacy Network (6) para lhes dar voz e apoio em um ambiente contencioso dominado pela ideologia trans dogmática.

No NHS, os médicos em regra são legalmente obrigados a discutir os graves efeitos negativos de qualquer tratamento oferecido. Como em muitos outros aspectos, no entanto, a questão da disforia de gênero parece estar fora das regras usuais que governam a prática médica. Muitos envolvidos nesse campo comentaram o fato peculiar de que, apesar da preocupação extraordinária com a abstração de gênero que domina essa área, há pouca discussão sobre a realidade de carne e osso do sexo e da reprodução.

Um clínico entrevistado pelo Times de Londres relatou ter sido desencorajado de perguntar aos pacientes sobre essas questões: “Eu perguntaria com quem eles gostariam de ter um relacionamento, mas a gerência sênior me disse que o gênero é completamente separado do sexo”. No entanto, a luta pelo desenvolvimento na adolescência exige que aceitemos a realidade de quem somos, incluindo nossa sexualidade natal e os diferentes papéis exigidos de nós na reprodução. Existem todos os tipos de ansiedades ligadas a essas atividades e ao funcionamento do corpo — ansiedades que podem ser tão graves que distorcem nosso senso de identidade. Como observou o Dr. Cantor, os estudos disponíveis mostram que a maioria das crianças pré-adolescentes que se apresentam como trans acaba revertendo para uma identidade que concorda com o sexo biológico. No entanto, muitas dessas crianças (e seus pais) parecem receber pouca informação sobre como suas vidas serão afetadas se prosseguirem com a transição. Nas palavras de uma jovem que passou por isso: “Muita conversa sobre política de gênero e nenhuma sobre as realidades físicas envolvidas na transição”.

Com menores de idade, o consentimento para tratamento médico geralmente pode ser expresso pelos pais. Mas essas decisões em regra são tomadas quando uma criança tem uma doença física com risco de vida ou requer cirurgia. Contar com o consentimento informado em relação a intervenções médicas baseadas em gênero com consequências ao longo da vida, quando ninguém pode ter certeza do que a criança pensará daqui a 10 anos, é mais questionável. Toda a ideia de tratar medicamente a disforia de gênero é mudar o foco do problema da mente para o corpo. Mas, embora as crenças possam mudar, os efeitos de tais intervenções médicas podem ser irreversíveis.

É impressionante observar como certos membros do lobby pró-afirmação parecem ser inquestionáveis sobre sua abordagem, apesar da falta de dados de alta qualidade. E muitos dos dados existentes não suportam suas reivindicações. Um estudo de 2011, por exemplo, descobriu que “as pessoas com transexualismo, após a redesignação sexual, têm riscos consideravelmente mais altos de mortalidade, comportamento suicida e morbidade psiquiátrica do que a população em geral”. Já um artigo de 2018 sobre o impacto dos hormônios bloqueadores de puberdade concluiu que “evidências de baixa qualidade sugerem que tratamentos hormonais para adolescentes transgêneros podem alcançar os efeitos físicos pretendidos”, os autores também descobriram que “geralmente faltam evidências sobre o impacto psicossocial e cognitivo”.

Em 2016, o US Center for Medicare e Medicaid Services revisou os estudos de resultados a longo prazo da cirurgia de “redesignação sexual”. Dos 33 estudos revisados, a maioria encontrou problemas metodológicos que tornaram suas conclusões não confiáveis. E os estudos considerados confiáveis falharam em mostrar melhorias substanciais no funcionamento psicológico após a cirurgia de reatribuição de gênero — apesar do fato de que evidências anedóticas sugerem um forte viés em direção ao financiamento e publicação de estudos que se alinham às abordagens baseadas em afirmações (e um esforço compensatório para esconder os dados que não confirmam esses métodos).

De fato, vários estudos foram encerrados prematuramente após a oposição expressa de grupos de pressão pró-trans e seus aliados da mídia. Em 2017, a Universidade de Spa negou a extensão da pesquisa realizada pelo psicoterapeuta James Caspian (7) em pacientes que procuram reverter os efeitos da cirurgia de reatribuição de gênero. “A razão fundamental apresentada”, disse ele“era que isso poderia causar críticas à pesquisa nas mídias sociais e críticas à pesquisa seriam críticas à universidade, e eles também acrescentaram que era melhor não ofender as pessoas”.

Kenneth Zucker, pesquisador conhecido e líder clínico da Clínica de Identidade de Gênero para Crianças, Jovens e Famílias de Toronto, foi demitido em 2015 depois de ser acusado de realizar “terapia de conversão” por ativistas trans. As alegações se mostraram infundadas e o Centro de Dependência e Saúde Mental, seu empregador, concordou em pagar ao Dr. Zucker US $ 586.000 como parte de um acordo legal (e pediu desculpas “sem reservas” pelo tratamento que ele recebeu). Uma investigação subsequente exonerou completamente o professor Zucker e ficou claro que os ativistas que exigiam sua remoção estavam simplesmente zangados por ele ter ajudado as crianças a fazer as pazes com sua biologia antes de prosseguir com a transição (este é o chamado processo de “espera vigilante”, que médicos mais responsáveis usam em todo o mundo).

O dr. Zucker aparece no nosso vídeo sobre profissionais críticos

Em seu relatório para o Tavistock e Portman NHS Trust Board, o Dr. Bell citou a alta porcentagem de pacientes que sofrem de disforia de gênero que também têm outros problemas complexos como trauma, autismo, histórico de abuso sexual e transtorno de déficit de atenção. Essa descoberta é consistente com um crescente corpo de conhecimentos que conecta o desenvolvimento da disforia de gênero a fatores psicológicos. Desde que pedi demissão da minha vaga na Tavistock, muitos pais me contataram pedindo conselhos sobre a identificação de crianças e adolescentes que se identificam como trans e que geralmente tendem a exibir um ou mais desses fatores. Na maioria das vezes, os pais estavam preocupados com o fato de serviços como o da clínica Tavistock encorajarem a ideia de que os problemas de seu filho pudessem ser abordados de maneira genérica apenas com mudança de gênero.

Eles também expressavam preocupação de que seu filho estivesse sendo aliciado por um emaranhado de recursos de vídeo na internet que instruem as crianças e adolescentes sobre como ultrapassar qualquer “gatekeeping” clínico que possam encontrar. Uma característica cada vez mais comum de garotos e garotas que apresentam disforia de gênero é um profundo envolvimento em grupos de bate-papo on-line que apóiam seu sentimento de deslocamento, que os incentivam a ver vozes moderadas (incluindo os pais) como inimigos e que ecoam a linguagem de culto dos pró-anorexia e de sites pró-suicídio. Como nos cultos reais, os seguidores são incentivados a acreditar que toda a sua gama de problemas pessoais pode ser resolvida desde que adotem um dogma abrangente. “Sente-se deslocado do seu sexo, sente que não se encaixa?” pergunta o site Transgender Heaven. “Aqui está um grupo que entende seus sentimentos de deslocamento e confusão e pode oferecer uma identidade que pode fornecer certeza e um sentimento de que pertencimento.” Ou, como disse um vloggueiro pró-trans no YouTube, “trans é uma solução para quem se sente uma m…”.

“Minha experiência on-line, tendo sido afetada por esse nível de pensamento de grupo, esse nível de policiamento moral e as constantes ameaças implícitas de exposição social e [ostracismo] me fizeram uma pessoa intensamente internalizada e ansiosa”, relatou uma mulher detransicionada sobre sua experiência on-line neste mundo. “Isso me deixou paranóica acerca dos motivos das pessoas ao meu redor — eu vi meus pais como intolerantes porque o Tumblr me disse; porque eles resistiram por tanto tempo a fim de evitar que eu iniciasse tratamento com hormônios. Qualquer um que escorregasse e errase meus pronomes era, segundo o Tumblr, um inimigo. Um incidente — um ‘ela’ — tinha a capacidade de me fazer simplesmente odiar alguém. A versão de moral e justiça do Tumblr fez com que eu – uma adolescente insegura e impressionável – sentisse que meu único lugar seguro estava na minha cabeça, onde nunca seria vista como mulher.”

Dr. Marcus Evans (fonte: seu site oficial)

O influente psicanalista britânico Roger Earlie Money-Kyrle descreveu certa vez a dificuldade que todos temos em chegar a um acordo com três realidades distintas tradicionalmente associadas aos fatos da vida: 1 – a dependência de nossas mães na infância, 2 – a diferença entre os sexos e 3 – a diferença entre as gerações. Tomadas em conjunto, essas realidades nos apresentam verdades dolorosas sobre nossa dependência dos outros, nossas próprias limitações pessoais e nossa mortalidade. Mesmo aqueles de nós que acreditam que estamos bem ajustados e felizes muitas vezes nos damos conta de que estamos inconscientemente nos defendendo contra todas as implicações dessas realidades.

Em alguns casos, esses mecanismos de defesa podem nos levar a mudar radicalmente a maneira como nos apresentamos ao mundo. Mas a maturidade e o crescimento psicológico exigem que encaremos, em vez de evitar ou deturpar, a realidade de quem somos e de quem não somos. Mecanismos projetados para negar ou distorcer a realidade podem nos prejudicar, impedindo o desenvolvimento emocional. E, portanto, faz sentido entender nossa relação com o sexo e sua expressão no contexto de nossa luta com essas realidades, em vez de tratar o gênero como uma questão completamente separada da realidade biológica.

Os bebês costumam contar com uma figura materna atenta para trazê-los ao mundo e cuidar deles. Esse relacionamento (que se espera ser) amoroso e atencioso fornece uma base para o desenvolvimento da mente e do senso de si mesmo de uma criança. O influente  pediatra e psicanalista Donald Winnicott descreveu o relacionamento da mãe com o bebê nesta fase como preocupação materna primária. O feitiço da preocupação materna é quebrado quando a realidade colide com a forma de desmame e a mãe volta ao trabalho ou tem outro bebê.

Realidades biológicas básicas e diferenças entre os sexos podem provocar intensos sentimentos de exclusão em alguns membros da comunidade trans. Cada pessoa é diferente, mas algumas parecem acreditar que foram traumaticamente excluídas de seu gênero feminino legítimo; portanto, qualquer tentativa das mulheres nascidas mulheres de excluí-las é experimentada como um ataque psicológico (como evidenciado por suas expressões às vezes chocantes e intensas de raiva contra mulheres biológicas).

Acredito que essa sensibilidade à exclusão dos espaços femininos às vezes esteja relacionada a ansiedades e queixas inconscientes associadas à separação traumática do cuidador principal. Isso ajuda a explicar por que alguns membros da comunidade trans agem como se seu bem-estar psicológico dependesse de seu direito de entrar em qualquer espaço feminino, mesmo que as mulheres biológicas possam achar isso intrusivo e ameaçador.

O sexólogo americano-canadense Ray Blanchard cunhou o termo autoginefilia (8) para descrever a propensão de um homem a ser atraído sexualmente pelo pensamento de si mesmo como mulher. Mas, mesmo nos casos em que tais impulsos sexualizados estão ausentes, uma mulher trans pode ser impelida pelo desejo de estabelecer um substituto auto-incorporado para uma mãe (ou figura materna). Na minha experiência clínica, essas defesas psicológicas fortes dominam a mente e, assim, tornam difícil para a pessoa considerar visões alternativas ou estruturas psicológicas subjacentes.

Paralelamente a esses problemas de apego, as crianças também são apresentadas à realidade associada às suas limitações biológicas quando meninos ou meninas. Isso pode provocar fixações ou sentimentos rivais em relação ao outro sexo. Como parte do desenvolvimento normal, a criança experimenta maneiras diferentes de expressar sua sexualidade e se relacionar com o sexo oposto. Um menino precisa aceitar o fato de ter um pênis e que, eventualmente, terá que penetrar numa mulher para criar um bebê. Uma menina teria que se deixar penetrar se ela um dia quiser um filho. A ansiedade causada por esses diferentes papéis sexuais e seus diferentes requisitos pode causar extrema angústia ou ansiedade, o que leva a uma negação da sexualidade — quando uma criança que eu conheço foi informada de como os bebês eram feitos, ela respondeu que era nojento e que as pessoas podiam se machucar. A diferença física entre os sexos pode ser tão traumática que leva a uma tentativa de negar completamente as diferenças sexuais, pois os homens podem invejar as mulheres por suas capacidades reprodutivas, enquanto as mulheres podem invejar a potência de um homem e o poder social dado para eles socialmente. É um fenômeno humano universal que todos nós temos que enfrentar e resolver.

Isso pode ajudar a explicar a insistência curiosa de algumas mulheres trans de que seus corpos biologicamente masculinos não lhes oferecem vantagem competitiva no esporte, ou que seus corpos masculinos e anatomia sexual não devem ser vistos como ameaçadores para as mulheres em espaços vulneráveis, como vestiários e abrigos para vítimas de estupro. Tais ilusões, por sua vez, encorajaram um ecossistema acadêmico extenso de auto-declarados especialistas em gênero que insistem que a própria ideia de separar a humanidade em homem e mulher — a base da reprodução sexual e, portanto, a sobrevivência de nossa espécie — depende de alguma forma de construção artificial.

Repetindo: todo caso é diferente, e as pessoas podem chegar à sua auto-identidade trans de várias maneiras. A natureza extraordinariamente complexa de sua condição significa que os jovens disfóricos de gênero, em particular, precisam de acesso a médicos independentes que protejam os interesses a longo prazo de seus pacientes, em vez de usá-los para avançar em uma agenda ideológica.

Isso exige que os médicos mantenham uma certa distância dos ativistas para que possam realizar avaliações verdadeiramente independentes. Infelizmente, o relatório do Dr. Bell citou várias equipes no sentido de que a administração do serviço GIDS da Tavistock parecia ter sucumbido à pressão dos ativistas. E um artigo no Times descreveu cinco ex-funcionários da Tavistock que acreditavam que “organizações transativistas como a ´Mermaids´ estavam tendo um efeito ‘prejudicial’ ao promover a transição como uma solução completa para adolescentes confusos”. Isso é obviamente problemático.

Um processo de avaliação adequado envolve duas partes. Em primeiro lugar, uma abordagem psicoterapêutica estendida deve ser usada para avaliar e tentar entender o significado da apresentação do paciente. É importante ressaltar que isso inclui uma compreensão do contexto familiar e social em que qualquer distúrbio emergiu. Além disso, envolve uma apreciação dos fatores menos conscientes subjacentes à “identidade de gênero”. Esse difícil trabalho psicológico pode parecer ameaçador, pois muitas vezes desafia a convicção fortemente defendida de um indivíduo de que apenas uma mudança na identidade sexual pode trazer alívio aos seus problemas.

Em segundo lugar, a avaliação deve examinar a questão do consentimento informado e incluir uma discussão completa sobre as perdas e riscos envolvidos em qualquer intervenção ativa que possa comprometer o funcionamento biológico. A questão de como o indivíduo está informado sobre as implicações da intervenção médica deve ser vista como um indicador crucial. Por exemplo, se o indivíduo não tem nenhuma preocupação com a perspectiva e os resultados, essa falta de preocupação deve ser classificada como um sintoma que precisa ser investigado, em vez de simplesmente uma indicação positiva da motivação do paciente.

Também devemos lembrar que os pacientes que apresentam sintomas de disforia de gênero costumam ser dissociados do corpo natal, que sentem conter partes indesejadas ou inaceitáveis do seu próprio eu. A fantasia de que o indivíduo pode esculpir o corpo de acordo com seus desejos aumenta (temporariamente) a sensação de poder e controle sobre o corpo e tudo o que nele está contido. Isso tem semelhanças com a dismorfia corporal, uma condição pela qual o indivíduo fica obcecado por uma falha física. Esses indivíduos geralmente procuram cirurgia plástica com a crença de que seus problemas serão resolvidos se a falha for removida. Mas, no caso da disforia de gênero, a intervenção médica não pode erradicar completamente a realidade do gênero natal de um paciente. Isso pode levar a um sentimento de perseguição, pois o corpo oferece um lembrete da existência continuada de um aspecto indesejado do eu.

Esse sentimento de perseguição às vezes leva ao auto-ódio, que pode se transformar em ideação suicida. Outras vezes, o ódio é externalizado, e o indivíduo começa a sentir que está cercado por pessoas que questionam a validade de sua reivindicação de ser o gênero escolhido. É evidente que elementos agressivos do grupo pró-trans estão embarcando em uma campanha destinada a ameaçar todos aqueles que negam tal afirmação. É como se eles acreditassem que podem curar suas próprias dúvidas internas sobre a validade de suas reivindicações de gênero se puderem controlar as opiniões de outras pessoas, o que ajuda a explicar os sentimentos extremos de trauma que experimentam quando acreditam que foram maltratados.

Essa batalha pela percepção começou a influenciar o sistema jurídico no Reino Unido e em outros países que usam a auto-identificação como base legal para classificação. Agora, referir-se ao sexo biológico e não ao gênero pode ser classificado como um crime de ódio e não como uma expressão factualmente correta.

Alguns pais me pedem conselhos após filhos de repente anunciarem que têm disforia de gênero. Alguns me dizem que não confiam no atendimento de gênero oferecido pelo seu médico local. Digo a eles que qualquer indício de que os médicos estão empurrando a criança para baixo em um programa de diagnóstico e tratamento estreito e pré-formatado para todos deve ser visto como uma bandeira vermelha. Mas isso é difícil, porque as abordagens baseadas em afirmações estão sendo adotadas pelos serviços de saúde mental dirigidos a crianças e adolescentes.

“First, do not harm” [“Primeiro, não machuque”] deve ser o mínimo que esperamos daqueles que tratam nossos filhos. No entanto, em 2019, foi revelado que o programa GIDS na clínica de Tavistock havia reduzido a idade em que se oferece bloqueadores da puberdade para crianças com base em um estudo que — mais tarde foi revelado — concluiu que “após um ano de tratamento”, foi encontrado um aumento “em pacientes que nasceram do sexo feminino relatando à equipe que tentaram se machucar ou se matar” (9). O fato de os funcionários de Tavistock terem ignorado essas evidências sugere que eles aceitaram a ideia de que a transição é um objetivo a ser alcançado separado do bem-estar individual de cada criança, crianças essas que agora estão sendo usadas como peões em uma campanha ideológica.

Isso é o oposto do trabalho terapêutico responsável e atencioso, que se baseia na necessidade de restabelecer vínculos respeitosos, mas amorosos, entre mente e corpo. Tais são as normas em todas as outras áreas da prática terapêutica. E já é tempo de que os ideólogos que sequestraram a subcultura de gênero da terapia sejam responsabilizados.

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Veja os tweets de Marcus em @marcusevanspsyc. Ele é psicanalista em consultório particular e trabalhou anteriormente como psicoterapeuta consultor e diretor clínico associado do Serviço de Adultos e Adolescentes do Tavistock e Portman NHS Trust. Ele é autor de Abrindo espaço para a loucura na saúde mental: o entendimento psicanalítico da comunicação psicótica.

Observações da equipe No Corpo Certo:

(1) Para saber mais sobre a Disforia de Gênero de Início Repentino, cuja sigla em inglês é ROGD, leia a pesquisa da dra. Lisa Littman e visite o site formado por mães e pais de meninas e meninos com este problema.

(2) Siga no Twitter a Heather Brunskell-Evans e também a professora Michele Moore. Nós legendamos um vídeo com a Michele no nosso canal no Youtube acerca da implantação de políticas de “identidade de gênero” nas escolas.

(3) Em inglês, a abordagem de “espera vigilante” se chama watchful waiting.

(4) Nós legendamos uma entrevista com o dr. William Malone acerca dos efeitos colaterais dos hormônios (ela foi dividida em parte 1 e parte 2). Eis o perfil dele no Twitter.

(5) Legendamos um discurso da Charlie no nosso canal: veja aqui.

(6) O nome significa algo como “Rede de Militância Destransição”. Siga-os no Twitter . Não encontramos similar no Brasil, o que é triste. Destransicionados precisam de muito apoio, carinho e de serviços de saúde física e mental específicos.

(7) Nesta entrevista de 2019 com o dr. Blanchard ele fala mais sobre autoginefilia. Encontramos também este texto em português. Vale a pena segui-lo no Twitter.

(8) A censura à pesquisa do dr. James Caspian sobre destransição é contada neste texto em português e comprova como o ativismo trans atual prejudica o tratamento de disforia de gênero. Supostamente, deveria ser interesse de todos compreender por que para algumas pessoas o “tratamento” que lhes foi oferecido não funcionou. Censurar a pesquisa também colabora para a ideia de que a destransição e ou o arrependimento seriam fenômenos raros.

(9) Foi o acadêmico de Oxford Michael Biggs que descobriu que resultados negativos dos estudos sobre bloqueadores de puberdade estavam sendo escondidos. Você pode ler os artigos que ele escreveu traduzidos em português aqui e aqui.